Direito ao esquecimento sob a ótica do STJ: liberdade de imprensa x dignidade da pessoa humana

A terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, em 07/12/2021, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, deu provimento – por unanimidade – ao Recurso Especial nº 1.961.581 / MS, interposto pela Editora Globo,  para negar o pedido de exclusão de notícia sobre um homem que foi acusado de se passar por policial para entrar em festa particular.

 

Mais especificamente, de acordo com os autos, o homem foi preso por dirigir embriagado e apresentar documento falso, tendo sido, contudo, absolvido em primeiro grau, pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT).

 

Disto, buscando excluir da internet as notícias sobre os supostos crimes, ele entrou com ação de obrigação de fazer contra três empresas de comunicação, tendo sido proferida sentença favorável, inclusive confirmada pelo TJMT, sob o argumento de que o tempo transcorrido – as notícias foram publicadas em 2009 – não justifica a manutenção da informação ao alcance do público.

 

Do outro lado, a Editora Globo, no Recurso Especial, alegou que o direito ao esquecimento não está em harmonia com a legislação brasileira e representa um retrocesso, bem como defendeu não haver na matéria irregularidade suficiente para ensejar sua exclusão, vez que o conteúdo apenas informou a prisão do envolvido, e não a existência de condenação.

 

Interessante observarmos a linha de raciocínio tecida pela Ministra Relatora Nancy Andrighi para averiguar se o direito à liberdade de imprensa foi exercido de modo legítimo ou não:

 

V. O direito à liberdade de imprensa não é absoluto, devendo sempre ser alicerçado na ética e na boa-fé, sob pena de caracterizar-se abusivo.  Tanto é assim que o próprio art. 220 da CF/88, ao mesmo tempo em que garante a plena liberdade de informação jornalística, impõe aos veículos de comunicação o dever de respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.

VI. Nessa linha de ideias, esta Corte já decidiu não ser “tolerável o abuso, estando a liberdade de expressar-se, exprimir-se, enfim, de comunicar-se, limitada à condicionante 

ética do respeito ao próximo e aos direitos da personalidade” (REsp 1594865/RJ, Quarta Turma, DJe 18/08/2017).

VII. Nessa linha de intelecção, para averiguar se o direito à liberdade de imprensa foi exercido de modo legítimo, é imprescindível estabelecer quais são os deveres a serem observados pelos profissionais do ramo jornalístico.

VIII. Sobre a matéria, a jurisprudência desta Corte Superior é  consolidada no sentido de que a atividade da imprensa deve pautar-se em três  pilares, a saber: (i) dever de veracidade, (ii) dever de pertinência e (iii) dever geral  de cuidado (REsp 801.109/DF, Quarta Turma, DJe 12/03/2013; REsp 1382680/SC, Terceira Turma, DJe 22/11/2013; AgRg no REsp 1390289/SC, Terceira Turma, DJe  11/12/2015). Na hipótese de inobservância desses deveres, haverá extrapolação do exercício regular do direito de informar, restando caracterizada a abusividade.

  1. IX. Com relação ao primeiro dos deveres, é imperioso que a matéria divulgue um fato verossímil. O direito de informar “apenas será digno de proteção quando presente o requisito interno da verdade, revelado quando a informação conferir ciência da realidade” (REsp897.338/DF, Quarta Turma, DJe 05/02/2021). Inclusive, há quem defenda a existência de um direito de quarta geração consistente em informar somente o que é verdadeiro (BONAVIDES, Paulo.  Teoria constitucional da democracia participativa: Por um Direito Constitucional de luta e resistência; por uma nova hermenêutica; por uma repolitização da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 48).

X. Assim, a imprensa deve estar atenta ao dever de veracidade, pois a falsidade dos dados divulgados não forma a opinião pública, mas, ao revés, a manipula.”

A Ministra Andrighi concluiu que no caso sob apreciação não houve abuso no exercício da liberdade de imprensa pela Recorrente, tendo-se estabelecido que não há dúvidas quanto à veracidade da informação divulgada pela Editora Globo, bem como tendo se caracterizado o interesse público na notícia, haja vista tratar-se de fato relativo à esfera penal, isto sem contar no fato de o Recorrido não ter alegado que a veiculação da notícia teria ofendido sua honra.

 

Quanto ao argumento do tempo transcorrido desde a ocorrência do fato noticiado, a Ministra, com supedâneo no entendimento pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2021, em sede de repercussão geral (Tema 786) sobre o direito ao esquecimento, esclareceu que este também não seria um critério suficientemente válido para acarretar a exclusão da notícia do site sob invocação do direito ao esquecimento.

 

Destaca-se a tese concebida pelo STF quanto ao tema:

“É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.

 

A Ministra ainda sublinhou no referido acórdão da Corte Suprema:

 

O que existe no ordenamento são expressas e pontuais previsões em que se admite, sob condições específicas, o decurso do tempo como razão para supressão de dados ou informações.

Vide a previsão do Código de Defesa do Consumidor (art. 43, §1º, da Lei nº 8.078/90) de que os cadastros de consumidores não podem “conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos”, ou, ainda, a previsão do Código Penal (arts. 93 a 95) quanto à reabilitação do condenado, que “poderá ser requerida, decorridos 2 (dois) anos do dia em que for extinta, de qualquer modo, a pena ou terminar sua execução”, assegurando-se ao condenado “o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação”. Ou, ademais, a previsão, quanto ao universo digital, trazida pela Lei nº 12.965/14 (o Marco Civil da Internet), que assegura como direito do usuário da rede a  “exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada  aplicação de internet a seu requerimento, ao término da relação entre as partes”, ressalvadas apenas “as hipóteses de guarda obrigatória de registros” (art. 7º, X).

Tais previsões, todavia, não configuram a pretensão do direito ao esquecimento. Relacionam-se com o efeito temporal, mas não consagram um direito a que os sujeitos não sejam confrontados quanto às informações do passado. Desse modo, eventuais notícias que tenham sido formuladas – ao tempo em que os dados e/ou as informações estiveram acessíveis – não são alcançadas pelo efeito de ocultamento. Elas permanecem passíveis de circulação se os dados nelas contidos tiverem sido, a seu tempo, licitamente obtidos e tratados.

Não nego o impacto do tempo na percepção humana dos acontecimentos que envolvem informações ou dados dos indivíduos, pois é certo que a mesma informação ao tempo dos acontecimentos e anos após servirá, a cada divulgação, a propósitos diversos. Porém, a meu ver, a passagem do tempo, por si só, não tem o condão de transmutar a condição de uma publicação ou um dado nela contido de lícita para ilícita.

(…)

Embora a pretensão inserta no direito ao esquecimento não corresponda ao intuito de propalar uma notícia falsa, ao pretender o ocultamento de elementos pessoais constantes 

de informações verdadeiras em publicações lícitas, ela finda por conduzir notícias fidedignas à incompletude, privando seus destinatários de conhecer, na integralidade, os elementos do contexto informado.

(…)

Parece-me que admitir um direito ao esquecimento seria uma restrição excessiva e peremptória às liberdades de expressão e de manifestação de pensamento e ao direito que todo cidadão tem de se manter informado a respeito de fatos relevantes da história social. Ademais, tal possibilidade equivaleria a atribuir, de forma absoluta e em abstrato, maior peso aos direitos à imagem e à vida privada, em detrimento da  liberdade de expressão, compreensão que não se compatibiliza com a ideia de  unidade da Constituição.

(grifamos)

No caso apreciado pela Corte Suprema, por maioria de votos, o Tribunal negou provimento ao Recurso Extraordinário 1.010.606, em que familiares da vítima de um crime de grande repercussão nos anos 1950 pleiteavam reparação pela reconstituição do caso ocorrida em 2004, no programa televisivo “Linha Direta”, da Tv Globo, sem que tenham autorizado tal feito.

O julgamento, que foi finalizado no dia 11.02.21, após quatro sessões de debates, envolveu interessante discussão sobre a ponderação de valores, pois foram colocados em pauta o conflito entre liberdade de expressão, direito à privacidade/intimidade,  dignidade da pessoa humana e direitos à memória coletiva, bem como foi considerado o fato de o crime já ter sido exposto anteriormente em jornais, revistas e livros, tendo se tornado um fato notório que assumiu domínio público.

 

Já no caso do recurso analisado pelo STJ, ainda que o Tribunal Estadual tenha entendido pela absolvição do Recorrido, sob o fundamento de que deveria prevalecer “o direito do apelado ao esquecimento, albergado pelo princípio da dignidade humana e pelo direito à inviolabilidade da vida privada, da honra e da imagem”, a Corte Superior entendeu que a obrigação de exclusão das URLs impostas à Recorrente deveria ser afastada, conforme entendimento do STF.

 

 

CONCLUSÃO

A ponderação entre princípios e, neste caso, entre direitos fundamentais, não é tarefa fácil. Não à toa invocam-se outros princípios para auxiliar na busca pelo equilíbrio de interesses nessas situações complexas, sendo a razoabilidade e a proporcionalidade as principais ferramentas para tanto.

Vale deixar claro que, se você for vítima de uma violação ou ofensa contra sua honra ou imagem, privacidade e/ou personalidade em geral, seja na internet ou fora dela, você tem o direito, sim, de invocar a tutela jurisdicional para afastar tais ilicitudes, seja na esfera administrativa, civil ou penal.

 

Isto não se confunde com o direito ao esquecimento, que se restringe à busca pela permissão judicial para que um fato, mesmo que verídico/confirmado, deixe de ser exposto ao público em geral.

 

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