A relação entre as plataformas de redes sociais e seus usuários é sem sombra de dúvidas uma relação de consumo, mesmo que o cadastramento ou inscrição na rede social seja gratuito; afinal de contas, é cediço que as plataformas auferem lucro com o serviço oferecido.
Plataformas como o Instagram e Facebook são fornecedores de serviços e produtos, enquanto os usuários que cadastram contas em tais plataformas se encaixam no conceito de consumidor trazido pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo que a responsabilidade do fornecedor, neste caso, é objetiva, ou seja, independe de culpa, nos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor e artigo 927, parágrafo único do Código Civil, que vão reproduzidos abaixo:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
- 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I – o modo de seu fornecimento;
II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi fornecido.
- 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
- 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
- 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
Art. 15. (Vetado).
Art. 16. (Vetado).
Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.
[grifos nossos]
O que sem tem percebido na jurisprudência pátria é que em casos de invasão de contas do Instagram e/ou Facebook, as alegações das plataformas, em geral, é de que a guarda de senhas/prevenção de acesso por terceiros é de responsabilidade exclusiva do consumidor, usuário, e que os serviços ofertados são seguros por possuírem “Termos de Uso” e “Diretrizes da Comunidade”, além de disponibilizarem dicas de segurança aos usuários. Elas alegam isso, justamente para cair na excludente de responsabilidade prevista acima, no inciso II do §3º do artigo 14 do CDC.
De outro lado, os consumidores alegam que mesmo seguindo as diretrizes da plataforma e tentando seguir as etapas para recuperação de senha ou conta, não obtiveram êxito, e que os efeitos de um golpe não atingem somente eles, mas também familiares e amigos que ficam expostos ao receber, por exemplo, um golpe em que o estelionatário “rouba” a conta do usuário, finge ser o titular da conta e solicita dinheiro para os amigos/seguidores que a vítima tem ou vende produtos em seu nome. Isso falando apenas de golpes com cunho econômico, não das questões de violação direta à imagem e a honra que sabemos que acontecem diariamente.
A hipossuficiência jurídica, informacional e técnica dos usuários consumidores em relação as plataformas é evidente, e isso também vale para usuários que sejam pessoas jurídicas.
É importante dizer que o mero fato de o usuário ser pessoa jurídica não é suficiente para descaracterizar a relação de consumo nos casos em que a rede social for utilizada como consumidora final e não como um insumo na cadeia de produção da pessoa jurídica.
Fato é, que a invasão da conta em rede social por terceiro implica na responsabilidade objetiva do fornecedor (artigos 14 do Código de Defesa do Consumidor e 927, parágrafo único do Código Civil), posto ter falhado no seu dever de oferecer serviço seguro e estável, configurando verdadeiro fortuito interno, que nas lições de Sérgio Cavalieri Filho significa:
“Cremos que a distinção entre fortuito interno e externo é totalmente pertinente no que respeita aos acidentes de consumo. O fortuito interno, assim entendido o fato imprevisível, e, por isso, inevitável ocorrido no momento da fabricação do produto ou da realização do serviço, não exclui a responsabilidade do fornecedor porque faz parte de sua atividade, liga-se aos riscos do empreendimento, submetendo-se a noção geral de defeito de concepção de produto ou de formulação do serviço.
Vale dizer, se o defeito ocorreu antes da introdução do produto no mercado de consumo ou durante a prestação do serviço, não importa saber se o motivo que determinou o defeito; o fornecedor é sempre responsável pelas suas consequências, ainda que decorrente de fato imprevisível e inevitável.
O mesmo já não ocorre com o fortuito externo, assim entendido aquele fato que não guarda nenhuma relação com a atividade do fornecedor, absolutamente estranho ao produto ou serviço, via de regra ocorrido em momento posterior ao da sua fabricação ou formulação. Em caso tal, nem se pode falar em defeito do produto ou do serviço, o que, a rigor, já estaria abrangido pela primeira excludente examinada – inexistência de defeito (art. 14, § 3°, I) ”
(CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor – São Paulo: Atlas, 2008. P. 256-257).
[Grifos nossos]
Vale registrar que o STJ chegou a editar súmula sobre o fortuito interno no caso das instituições financeiras:
“Súmula 479 do STJ – “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.”
No tocante ao cerne deste artigo, os danos morais, o que se observa na jurisprudência pátria é que se tem admitido sua incidência para pessoas físicas, ao passo que para as pessoas jurídicas há certa divergência, na verdade, exige-se que a honra objetiva da empresa seja prejudicada para a caracterização do dano moral.
A título exemplificativo, citamos uma recente decisão prolatada em 31/07/2024, em sede de apelação, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (autos nº 1175739-58.2023.8.26.0100), que negou provimento – por maioria de votos – a apelada, pessoa jurídica, em relação aos danos morais, entendendo que pessoa jurídica por não possuir honra subjetiva, não sofreria ofensa a dignidade, autoestima, decoro etc, ou seja, não possui atributos de personalidade que autorizem a aplicação de dano moral.
No seu fundamento, o Desembargador Relator Monte Serrat explicou que as pessoas jurídicas possuem honra objetiva, de modo que, o dano moral para elas se configuraria se comprovada, por exemplo, abalo à sua credibilidade ou prejuízo às relações comerciais, como nos casos de protesto indevido de títulos, inscrição irregular em cadastros de inadimplentes, e não nos casos de invasão de contas/ter a conta hackeada.
A desembargadora que restou vencida, Maria Lúcia Pizzotti, declarou voto para explicar suas razões de divergência. Para ela, o dano sofrido pela apelada não foi um mero dissabor, mas, sim, um grave abalo moral.
Nas palavras dela:
“Diante da inativação do perfil na rede social Instagram (@energyreal) houve quebra abrupta da relação contratual que abalou a honra objetiva da pessoa jurídica, já que a perda repentina do acesso à plataforma acima (em decorrência de ter sofrido invasão de hackers) repercutiu na divulgação de suas atividades, cuja plataforma é utilizada desde 2017. Afetando a reputação da autora perante seus parceiros comerciais, clientes e seguidores, e é passível de reparação pelo dano extrapatrimonial suportado, conforme entendimento majoritário desta Corte no julgamento de casos análogos:
RECURSO APELAÇÃO CÍVEL PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – ADMINISTRAÇÃO DE REDE SOCIAL AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM REPARAÇÃO MORAL Autora que teve seu perfil em rede social invadido ( “Instagram” ) e busca compelir a requerida a restabelecer seu acesso à conta, bem como lhe indenizar pelos prejuízos morais suportados. Responsabilidade da requerida que não decorre da existência de publicações indesejadas ou da invasão por terceiro de determinada conta existente na plataforma da rede social, mas de sua inércia em adotar de forma célere as medidas necessárias para cessar o uso desautorizado do perfil criado pela demandante, mesmo após a existência de denúncia formalizada. Obrigação de fazer bem determinada. Danos morais caracterizados. Valor do “quantum” indenizatório, todavia, que deve ser reduzido de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para R$ 8.000,00 (oito mil reais), montante que melhor observa os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, bem como as peculiaridades da hipótese. Procedência parcial na origem. Sentença parcialmente reformada. Recurso de apelação da requerida em parte provido para ajustar o valor da reparação moral, sem reflexo nas verbas sucumbenciais. (TJSP; Apelação Cível
1018688-87.2022.8.26.0562; Relator: Marcondes D’Angelo; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos – 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/04/2023; Data de Registro: 27/04/2023)
RESPONSABILIDADE CIVIL – Conta de rede social invadida por terceiros – Ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos morais – Sentença de procedência – Apelo do réu e recurso adesivo da autora – Impossibilidade de reativação da conta não comprovada – Ausência de excludente de responsabilidade decorrente de culpa exclusiva da consumidora ou de terceiros – Hipótese de responsabilidade objetiva – Risco da atividade – Falha na prestação do serviço – Danos morais caracterizados – Valor da indenização – Majoração ou redução descabidas – Honorários advocatícios fixados por equidade – Descabimento – Valor da indenização não irrisório – Artigo 85, § 2º, o Código de Processo Civil – Apelação desprovida, acolhido em parte o recurso adesivo (TJSP; Apelação Cível 1011355-05.2023.8.26.0286; Relator: Carlos Henrique Miguel Trevisan; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itu – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/07/2024; Data de Registro: 29/07/2024)
Como bem ressaltou o d. Magistrado sentenciante a relação jurídica é de consumo, portanto, aplicáveis as disposições do Código de Defesa do Consumidor, cuja legislação tem por escopo a proteção especial da parte considerada hipossuficiente técnica e economicamente.
Incontroverso que houve a invasão do perfil indicado na inicial, por terceiros, o que gerou a perda de acesso a sua outra conta, alterando seu e-mail e senha vinculados e retiraram completamente o seu acesso.
(…)”
Na sequência, a desembargadora citou o artigo 14 do CDC, tratando da responsabilidade objetiva do fornecedor, concluindo não ser possível invocar a excludente de responsabilidade civil da empresa apelada por culpa exclusiva do usuário ou de terceiros, sendo devida a reparação civil (artigos 186 e 927 do Código Civil).
No seu entendimento, inclusive, o valor arbitrado pela sentença recorrida, a título de danos morais, também deveria ser mantido, que foi de R$ 10.000,00.
O processo ainda não se encerrou, e ainda cabem outros tipos de recurso. Mas, como dito, este é apenas um exemplo de como a situação dos danos morais em relação as pessoas jurídicas deve ser analisado caso a caso, ainda mais em relação a assuntos mais contemporâneos envolvendo a privacidade e a proteção de dados pessoais e informações, enquanto que em relação as pessoas físicas, o reconhecimento dos danos morais já é bem mais facilmente aceita.
Os consumidores precisam, então, sempre tentar se munir do maior número de provas possível, ainda que a responsabilidade do fornecedor seja objetiva, ou seja, documentar/registrar as tentativas de contato com o fornecedor, neste caso, a plataforma de rede social, bem como guardar eventuais protocolos administrativos para tentativa de resolução do problema, bem como evidências dos golpes, pois isso facilita a comprovação do direito na esfera judicial. Lembrando, sempre, que os prints são importantes, mas o ideal é que conversas por WhatsApp e movimentações nas redes sociais e aplicativos sejam registrados via ata notarial, realizada em tabelionato de notas, para poderem ser utilizadas como meio de provas em processos judiciais.
Isto é bem importante porque quando se ajuíza uma ação, o autor da ação, ou seja, a pessoa que está entrando com a ação para defender seu direito, precisa comprovar o que está alegando. Como o consumidor quase sempre é muito mais vulnerável do que o fornecedor, é comum que não consiga ter tantas provas para apresentar em defesa dos seus direitos, é por isso que nessas ações um dos pedidos essenciais é para que seja reconhecida a relação de consumo entre as partes, assim, é possível pedir a inversão do ônus da prova com base no Código de Defesa do Consumidor (artigo 6º, inciso VIII), ou seja, o fornecedor passa a ter que comprovar que não violou os direitos do autor e agiu conforme a lei, mas, antes desse passo, um mínimo de evidências precisa ser demonstrado pelo autor.
Nossa equipe multidisciplinar conta com a participação direta dos sócios proprietários RODRIGO CASTOR DE MATTOS e ANALICE CASTOR DE MATTOS, que lideram o escritório DELIVAR DE MATTOS & CASTOR ADVOGADOS, sendo reconhecida pela excelência e pela vasta experiência em lidar com casos jurídicos complexos, na área do Direito do Consumidor, de Contratos, Direito Civil, Direito Empresarial, Compliance, Lei Geral de Proteção de Dados entre outras. Com uma tradição consolidada, nosso escritório é amplamente respeitado por nossa capacidade de proporcionar soluções jurídicas personalizadas e eficazes. Ao longo dos anos, temos orgulho de nossa atuação em oferecer serviços de alta qualidade que refletem nosso compromisso com a excelência e a defesa dos interesses de nossos clientes.
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