Por Raphael Ricardo Tissi1
O crime de sonegação fiscal, mediante supressão ou redução de tributo, contribuição social e qualquer acessório, mediante fraude ou falsidade (art. 1º, incisos I a IV da Lei nº 8.137/90)2, somente se consuma após o lançamento definitivo do tributo, ou seja, após decisão final em processo administrativo tributário, entendimento pacificado pelo Supremo Tribunal Federal por meio da Súmula Vinculante nº 243.
Trata-se, assim, de crime material, ou seja, sua consumação se dá não com a conduta de declaração falsa ou omissão de dados, mas com a ocorrência do resultado consistente na supressão ou redução fraudulenta do tributo, cuja consolidação definitiva depende de prévio esgotamento de processo administrativo fiscal, assegurada a ampla defesa e o contraditório ao contribuinte.
Nos crimes contra a ordem tributária há uma particularidade importante, qual seja, a possibilidade da extinção da punibilidade pelo pagamento integral do débito (art. 34 da Lei nº 9.249/954 e art. 9º, § 2º da Lei nº 10.684/035). Ainda que a lei não preveja expressamente que a extinção da punibilidade nessa hipótese possa ser realizada a qualquer tempo, a jurisprudência consolidou o entendimento de que mesmo após o início do processo criminal, que se dá com a decisão de recebimento da denúncia, ou até mesmo após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória6, o pagamento integral do tributo extingue a punibilidade do agente. Nesse cenário, é muito comum que os contribuintes, acionados pela Fazenda Pública em execuções fiscais, apresentem à penhora o seguro garantia judicial, previsto no artigo 835, § 2º do Código de Processo Civil e no artigo 9º, inciso II da Lei nº 6.830/80, o qual consiste em modalidade de seguro que garante o pagamento de valores que o tomador (potencial devedor) necessite realizar no trâmite de processos judiciais. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recente precedente7, entendeu que o seguro garantia judicial produz os mesmos efeitos jurídicos que o dinheiro, seja para fins de garantir o juízo, seja para possibilitar a substituição de outro bem objeto de anterior penhora, desde que (i) não inferior ao débito apresentado na petição inicial pelo credor, acrescido de 30% (trinta por cento), (ii) a apólice apresentada esteja em conformidade com as normas editadas pela autoridade competente, no caso, pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) e (iii) apresentada a certidão de regularidade da sociedade seguradora perante a referida autarquia. Na ocasião, inclusive, restou consignado pelo Ministro relator que “No cumprimento de sentença, a fiança bancária e o seguro-garantia judicial são as opções mais eficientes sob o prisma da análise econômica do direito, visto que reduzem os efeitos prejudiciais da penhora ao desonerar os ativos de sociedades empresárias submetidas ao processo de execução, além de assegurar, com eficiência equiparada ao dinheiro, que o exequente receberá a soma pretendida quando obter êxito ao final da demanda.” Considerando que o pagamento integral do crédito tributário é causa de extinção da punibilidade e que, diante da existência do seguro garantia idôneo, o crédito será satisfeito caso seja reconhecido como exigível pelo Poder Judiciário, não nos parece possível dar prosseguimento a inquéritos policiais, procedimentos investigatórios criminais ou ações penais por crime contra a ordem tributária, pois não há a chamada justa causa para a continuidade da persecução penal. Não se desconhece que o Superior Tribunal de Justiça, em sua função constitucional de uniformizar a interpretação da legislação federal, registra julgados no sentido de que “A garantia do crédito tributário na execução fiscal – procedimento necessário para que o executado possa oferecer embargos – não possui, consoante o Código Tributário Nacional, natureza de pagamento voluntário ou de parcelamento da exação e, portanto, não fulmina a justa causa para a persecução penal, pois não configura hipótese taxativa de extinção da punibilidade ou de suspensão do processo penal.”8
Contudo, o mesmo Tribunal Superior registra precedente admitindo que “foi oferecida e aceita garantia integral sobre os valores devidos. Tal o quadro, comprovado que o tributo era realmente devido, a mencionada garantia, após o trânsito em julgado da decisão, será entregue à Fazenda Pública – art. 32, § 2º, da Lei n. 6.830/1980. Diante dessas circunstâncias, notadamente considerando a orientação desta Casa firmada no sentido de que o pagamento integral do tributo é causa extintiva da punibilidade, não encontro motivos para o prosseguimento da persecução criminal, pois, diante da garantia integral dos valores, qualquer solução alcançada no juízo cível acarretará a extinção da presente demanda criminal.”9
Nesse mesmo sentido, registra-se decisão da Décima Sexta Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que determinou o arquivamento de ação penal por crime contra a ordem tributária ante a existência de penhora de imóvel de expressivo valor realizada nos autos de Execução Fiscal. Na oportunidade, os magistrados entenderam que tal garantia representa a “Equivalência aos efeitos do pagamento ou parcelamento, que extinguem a punibilidade, vez que o desfecho da discussão judicial com a Fazenda será necessariamente a inexigibilidade do tributo ou o seu integral pagamento10. Em outra decisão, o mesmo Tribunal Bandeirante, por meio da Primeira Câmara de Direito Criminal, assentou idêntico entendimento, consignando que “(…) a garantia do pagamento prestada pela fiança bancária, de qualquer forma, independentemente do resultado da ação anulatória, será resolvida, quer pelo pagamento em caso de improcedência da ação, quer pela decisão de inexistência do débito, de forma a afastar a lesividade ao bem jurídico e a consequente tipificação da conduta do paciente.”11 Em suma, o seguro garantia judicial que esteja de acordo com as exigências legais, por ser automaticamente conversível em dinheiro ao final do processo de Execução Fiscal, harmoniza o princípio da máxima efetividade da execução, ao resguardar o interesse do Estado em receber o crédito tributário, com o princípio da menor onerosidade para o contribuinte executado, pois lhe propicia o exercício do direito público subjetivo de acionar o Poder Judiciário para questionar a legalidade da cobrança e, ao mesmo tempo, desonera ativos de sociedades empresárias submetidas ao processo de execução, providência de suma importância principalmente nesse cenário de pandemia, que impõe sérias restrições econômicas. Não nos parece correto, contudo, permitir a utilização do Direito Penal, com sua natureza subsidiária, intimamente ligada ao princípio da intervenção mínima, para a finalidade meramente arrecadatória da máquina pública, como se fosse um método de coerção em prol da Fazenda Pública para o recolhimento do tributo, tolhendo do contribuinte o direito de legitimamente discuti-lo em Juízo sob pena de prisão. Revela-se mais adequado, em tais casos, obstar a persecução penal do contribuinte, evitando-se o constrangimento ilegal de uma ação penal cuja eventual pena, em caso de condenação, será extinta ante a certeza do futuro adimplemento da obrigação tributária. Por fim, considerando que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o seguro garantia judicial produz os mesmos efeitos jurídicos que o dinheiro, seria medida salutar a alteração legislativa para inserir, no artigo 151 do Código Tributário Nacional, o oferecimento de seguro garantia judicial que esteja de acordo com as exigências legais e regulamentares como hipótese de suspensão de exigibilidade do crédito tributário, assim como ocorre com o depósito em dinheiro12.
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(1) Advogado em Curitiba/PR, sócio do escritório Delivar de Mattos & Castor Advogados Associados, graduado pela PUC-PR e com pós-graduação pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná – FEMPAR.
(2) “Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.”
(3) “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
(4) Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.
(5) Art. 9o É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
- 1oA prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
- 2oExtingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.”
(6) Nesse sentido: STF – 2ª T – RHC 128.245/SP – Rel. Min. Dias Toffoli – j. 23.08.2016; STJ – 5ª T. – HC 362.478/SP – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe 20.09.2017.
(7) STJ – 3ª T. – REsp 1.838.837/SP – Rel. p/ acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – j. 12.05.2020.
(8) STJ – 6ª T. – RHC 65221/PE – Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz – DJe 27.06.2016.
(9) STJ – 6ª T. – HC 351.718/PE – Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro – DJe 30.10.2018. Menciona-se neste julgado outro precedente anterior, do ano de 2010: STJ – 6ª T. – HC 155.117/ES – Rel. Min. Haroldo Rodrigues (Des. Conv. TJCE) – DJe 03.05.2010.
(10) TJSP – 16ª Câmara de Direito Criminal – HC 2031657-33.2017.8.26.0000 – Rel. Des. Otavio de Almeida Toledo – j. 20.03.2018.
(11) TJSP – 1ª Câmara de Direito Criminal – HC 0070516-65.2011.8.26.0000 – Rel. Des. Marco Nahum – j. 25.07.2011.
(12) “Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:
(…)
II – o depósito do seu montante integral;”