Não há invalidade em abstrato na fixação de sanções penais atípicas contra acusado que firmou acordo de colaboração premiada, desde que não decorra de violação à Constituição Federal, ao ordenamento jurídico e à moral e à ordem pública.
Com esse entendimento, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu que, em tese, o Ministério Público pode limitar a pena máxima ser cumprida e estabelecer critérios diferenciados para a execução de pena, em troca da colaboração do acusado.
O julgamento foi resolvido por maioria apertada de 6 votos a 5 e resultou da interpretação da Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), que introduziu a colaboração premiada como meio de obtenção de prova e foi, depois, alterada substancialmente pelo “pacote anticrime” (Lei 13.964/2019).
O caso trata de investigações de possíveis crimes praticados por diversas autoridades, uma entre as quais com prerrogativa de foro no STJ. Para um dos acusados, o Ministério Público Federal ofereceu benefícios não previstos em lei como incentivo para a colaboração premiada.
A proposta fixa tempo máximo para cumprimento da pena privativa de liberdade (12 anos) e prevê critérios diferenciados para o regimento de cumprimento da punição (em prisão domiciliar) e para progressão de regime (em prazos inferiores aos do artigo 112 da Lei de Execução Penal).
Relatora, a ministra Nancy Andrighi indeferiu o pedido de homologação do acordo, por ofensa ao artigo 4º, parágrafo 7º, inciso II da Lei das Organizações Criminosas. A norma prevê que são nulas exatamente as cláusulas que violem os critérios de definição do regime inicial de cumprimento de pena previsto no Código Penal e de e os requisitos de progressão de regime da LEP.
Venceu a divergência inaugurada pelo ministro Og Fernandes, segundo a qual não se deve vedar de pronto o oferecimento de sanções penais atípicas. Em vez disso, elas devem ser sopesadas frente à gravidade do fato criminoso e a eficácia da colaboração premiada para o processo penal.
Solução consensual é assim mesmo
Em voto-vista apresentado nesta quarta-feira (5/10), o ministro Og Fernandes reconheceu que o instituto da colaboração premiada vem sendo aprimorado jurisprudencial e legalmente ao longo dos últimos anos, e apontou algumas diretrizes interpretativas que julgou coerentes.
Para ele, o desenvolvimento de uma nova e elaborada criminalidade levou à necessidade da criação de um modelo consensual de Justiça na seara criminal, que vem sendo incorporado e incentivado pelo legislador ordinário.
Esse modelo privilegia a autonomia de vontade das partes, desde que presentes a boa-fé e o dever de lealdade processual, ainda que a liberdade de negociação não seja totalmente ampla.
O que se busca, portanto, é um equilíbrio. A colaboração premiada deve ser atrativa a ponto de estimular o acusado a abandonar a atividade criminal para colaborar com a persecução penal. Mas não em excesso, de modo a passar a imagem de que, para escapar da pena, basta comprar a própria liberdade por meio da venda de informações.
“Nesse contexto, a melhor solução não parece repousar na vedação dos benefícios atípicos, mas sim no cuidadoso sopesamento da extensão dos benefícios pactuados frente à gravidade do fato criminoso e à eficácia da colaboração, conforme previsto no parágrafo 1º do artigo 4º da lei 12.850”, disse o ministro Og Fernandes.
Para ele, se a lei, ao disciplinar a colaboração premiada, permite a extinção da punibilidade do colaborador (por meio do perdão judicial) e a isenção da prisão (substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos), com mais razão será possível criar tais benefícios atípicos, prevendo regras especiais de progressão e cumprimento da pena.
Tem que valer a pena
O tema dividiu o colegiado da Corte Especial. Ao acompanhar o relator, a ministra Laurita Vaz pontuou que, se o Ministério Público não puder definir benesses de acordo com cada caso, o instituto da colaboração premiada estará fadado ao fracasso. “Nada mais objetivo para que partes negociantes possam tratar dos termos da colaboração com equilíbrio, transparência e proporcionalidade”, disse.
“Penso temos que examinar cada caso, ponderar e ver se realmente há condição de aprovação do plano conforme venha apresentado”, concordou o ministro Raul Araújo. Formaram a maioria os ministros João Otávio de Noronha, Luis Felipe Salomão, Isabel Gallotti e Francisco Falcão.
Para o bloco vencido, admitir as sanções penais atípicas como firmadas no caso concreto significará dizer que a lei, após a alteração pelo “pacote anticrime”, não precisa mais ser aplicada ou mesmo não tem validade.
Ao acompanhar a relatora, a ministra Maria Thereza de Assis Moura afirmou que todos os termos previstos no acordo julgado estão proibidos pelo artigo 4º, parágrafo 7º, inciso II da Lei 12.850/2013.
Por isso, não se trata de aplicar benefício não previsto legalmente. A proibição é expressa. “Assim, nós revogamos a lei ou vamos passar a entender que tudo pode, que não há nenhum limite e que portanto não precisamos da lei”, criticou.
Voluntarismo do MP
O ministro Mauro Campbell concordou, ao destacar que as alterações promovidas pelo “pacote anticrime” foram feitas pelo Congresso justamente para conter o voluntarismo do Ministério Público em colaborações premiadas, por vezes, por demais benéficas a quem cometeu e admitiu crimes.
O voto do ministro Og Fernandes tocou nesse ponto. Para ele, apesar do risco de benefícios exagerados resultarem em estímulos a colaborações premiadas falsas, a própria Lei 12.850/2013 já tem instrumentos adequados para evitar abusos.
São eles: a necessidade de homologação judicial do acordo; a renúncia ao direito ao silêncio; o compromisso de dizer a verdade; a hipótese de rescisão do acordo em caso de omissão dolosa sobre fatos objeto da colaboração; e a obrigação de cessar envolvimento em conduta ilícita; dentre outros.
Ficaram vencidos com a ministra Nancy Andrighi, relatora da ação, os ministros Maria Thereza de Assis Moura, Herman Benjamin, Mauro Campbell, Benedito Gonçalves e Paulo de Tarso Sanseverino.
A votação final deu provimento ao agravo do Ministério Público para devolver os autos à relatora, para análise de homologação da proposta de acordo de colaboração premiada, tomando por base o sopesamento da extensão dos benefícios pactuados, ainda que atípicos, frente à gravidade do fato criminoso e a eficácia da colaboração.
Pet 13.974
Fonte: Consultor Jurídico (Conjur)