04 de Maio de 2.020
Analice Castor de Mattos
Mestre em Direito Sócioeconômico pela PUCPR
Advogada. Sócia do escritório Delivar de Mattos & Castor
Alani Caroline Osowski Figueiredo
Acadêmica de Direito da PUCPR
Estagiária do escritório Delivar de Mattos & Castor
Em virtude da pandemia do coronavírus (COVID-19), que já apresenta reflexos econômicos e sociais em todo país, a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPDP – Lei nº 13.709/2018), prevista anteriormente para agosto deste ano, foi adiada pelo Presidente Jair Bolsonaro para o dia 03 de maio de 2021, com a assinatura da Medida Provisória nº 959 no último dia 29 de abril de 2020. Caso o instrumento normativo não seja convertido em lei pelo Congresso Nacional, no prazo de 60 (sessenta dias), prorrogável por igual período, a referida Medida Provisória perderá sua eficácia. Paralelamente, aguarda deliberação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 1179/2020, já aprovado pelo Senado, o qual prorroga a entrada em vigor da LGPDP para 01 de janeiro de 2021. Em caso positivo, prosseguirá para a sanção presidencial.
Se de um lado o adiamento da aplicação de multas e sanções previstas na LGPDP aparenta equilíbrio e remediação na atual conjuntura econômica de instabilidade, de outro, acarreta retrocesso nas práticas de compliance, as quais vêm sendo instituídas pelas empresas, gerando insegurança jurídica quanto à possibilidade do uso indevido dos dados pessoais, sem embasamento legal e de forma indiscriminada, sob a justificativa do combate ao COVID-19. Ademais, no momento em que governantes cogitam importar experiências com a vigilância digital de países que apresentaram medidas eficientes, porém questionáveis, no combate ao vírus, a exemplo da China, Coreia do Sul, Israel e Japão, com a finalidade de conter os avanços da pandemia. Em especial nos países asiáticos, onde pouco se fala em proteção de dados, e consequentemente, em esfera privada.
Na China, os movimentos dos cidadãos são captados em tempo real. Há uma troca de dados momentânea entre as empresas de telefonia e internet com as autoridades. Existem 200 milhões de câmeras distribuídas por todo território, capazes reconhecer a face dos habitantes e de auferir a temperatura corporal destes, graças à inteligência artificial. O sistema é capaz de identificar pessoas contaminadas com o vírus em uma estação de trem, e ainda, encaminhar mensagens para todos os passageiros que estavam no mesmo vagão. Ainda, subsiste uma estrutura de drones que sobrevoa e monitora as pessoas em meio à quarentena, as quais, em caso de inobservância às regras, são repreendidas com advertências e em alguns casos, multas. (1) Em Israel, o governo passou a monitorar celulares com o objetivo de rastrear pessoas infectadas pelo coronavírus. A deliberação, vista como perigosa, ocorreu sem aprovação parlamentar e inspeção judicial. (2)
Não se pode negar a eficácia dessas ferramentas no combate ao COVID-19, visto que a população passou a respeitar as determinações de distanciamento social. Em um comparativo publicado em março, a Europa ultrapassou a China no dobro de infectados. (3) E nesse contexto, muito se fala na eficiência do Big data em detrimento das medidas de combate utilizadas no Ocidente. No entanto, em virtude da eficiente proteção de dados existente na Europa, estabelecida pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados na União Europeia (GDPR), o qual entrou em vigor em 2018, a implantação de um sistema digital inspecionador da população não é viável. Trata-se de uma lei muito rigorosa, em relação às regras de obtenção de consentimento para o uso de dados e o processamento de identificação dos riscos pela má gerência dessas informações. A privacidade, o consentimento e a dignidade humana seriam atingidos, pois a linha entre a eficácia e os excessos é tênue.
Nesse cenário, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira, inspirada no modelo europeu, segue os parâmetros estabelecidos em nossa Constituição Federal, elencando a proteção de dados aos direitos fundamentais e ao livre desenvolvimento da economia, tecnologia e inovação. Entretanto, seu protagonismo está voltado ao cidadão, titular e detentor desses dados, o qual dá sua anuência para a utilização, fundado no livre desenvolvimento de sua personalidade. (4)
A lei exige o esclarecimento do propósito da coleta, de forma transparente e objetiva, com informações precisas dos dados necessários para a efetivação do serviço/acesso. O capítulo IV cuida exclusivamente do tratamento de dados pessoais pelo Poder Público, compreendendo no artigo 23, que este deverá ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público. Em face disso, regras são estabelecidas, haja vista o fornecimento de informações claras e atualizadas, a finalidade da coleta e os procedimentos utilizados para sua execução, observando políticas públicas, conforme prevê o artigo 26.
Prevê ainda, a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados voltada para a elaboração de diretrizes de uma Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e Privacidade, visando à fiscalização, a aplicação de sanções, a promoção do conhecimento das normas, as medidas de segurança à população, bem como a promoção de ações de cooperação, juntamente com outras autoridades de proteção, sendo responsável, inclusive, por supervisionar e fiscalizar os entes públicos.
Por essa lógica, a lei estabelece parâmetros de proteção, impondo maior controle de governança de dados pessoais, ou seja, todas as características que possam identificar uma pessoa por um meio digital ou não, por meio de fotos da face, ou imagem de parte do corpo, estando vinculados ao cadastramento de um nome, etc. Assim, a LGPDP proíbe generalidades, as quais tenham como propósito a simplificação de procedimentos.
Dentro desse contexto, o Brasil indicou em abril que passaria a monitorar dados disponibilizados por operadoras de telefonia, sendo alvo de muitas críticas. De acordo com o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (SindiTelebrasil), os dados seriam repassados às autoridades de forma anônima, com um dia de atraso. A Advocacia-Geral da União também foi consultada pela Secretaria de Comunicações acerca da “possibilidade de dados de geolocalização, obtidos a partir de dispositivos móveis de comunicação, permitindo a identificação individualizada do usuário, para fins de combate ao COVID-19”, entendendo pela viabilidade do compartilhamento, desde que de forma anônima e agregada. (5)
Contudo, o Governo Federal voltou atrás da decisão de manipular dados dos telefones móveis, a fim de monitorar o deslocamento da população em meio à pandemia, pleiteando por mais prudência. (6) Vários estados, porém, vão na contramão, a exemplo de São Paulo, ao se utilizar de dados obtidos nos celulares com o argumento de localização de aglomerações. (7)
Em 16 de abril de 2020, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo concedeu liminarmente o afastamento de monitoramento de dados do celular de um cidadão, em Mandado de Segurança impetrado na justificativa da existência de grave e iminente ameaça de invasão à privacidade e ao direito de ir e vir, frente ao acordo celebrado pelo Governo do Estado com as empresas de telefonia para monitorar o isolamento durante a quarentena. (8)
Ainda, no dia seguinte, a Presidência da República editou a Medida Provisória nº 954/2020 acerca do compartilhamento de dados por empresas telefônicas à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para fins exclusivos de pesquisas estatísticas em meio à situação de emergência, fundada na Lei nº 13.979/2020. A princípio, conforme seu artigo 3º, os dados teriam caráter sigiloso e não seriam utilizados como meio de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial. Posteriormente, essas informações seriam eliminadas das bases de dados.
Todavia, em 24 de abril, a Ministra Rosa Weber suspendeu a referida Medida Provisória, atendendo o pleito da OAB na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.387, sob a justificativa de prevenção de danos irreparáveis à intimidade e ao sigilo da vida privada de mais de uma centena de milhão de usuários dos serviços de telefonia fixa e móvel no Brasil. (9)
Ao que nos parece, em que pese exista forte justificativa na prevenção ao coronavírus, há também iminente risco no compartilhamento de dados sem a devida fiscalização. À vista disso, deveria haver predominância dos interesses coletivos em detrimento aos individuais? Aqui entraria a importância da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, com o propósito de evitar excessos, invasões aos dados pessoais e sensíveis da população, bem como, a introdução de um estado de vigilância permanente.
A reflexão da evolução tecnológica, em busca da minimização de riscos para a população, defronte ao tratamento de dados pessoais em tempos de coronavírus é necessária. Todavia, são questões inovadoras em nossa cultura ocidental, as quais necessitam de maior reflexão dos juristas e pesquisadores, quanto à interpretação e a efetividade da lei, assegurando o direito à privacidade e possibilitando assim um desenvolvimento tecnológico seguro.
Nesse ponto e em tempos de pandemia, figura a importância de uma Autoridade especializada, capaz de oferecer segurança jurídica ao analisar controvérsias, vez que a definição de dado pessoal não é uma questão meramente jurídica, dependendo de uma equipe multidisciplinar e técnica. Na era da inteligência artificial, da informação e da economia digital, a lei deve exercer importante papel de proteção aos cidadãos – sujeitos vulneráveis.
O futuro da tecnologia é incerto, na medida em que a sociedade Black Mirror (10), não nos parece tão distante. O grande desafio está em não tolher a evolução, sem deixar de lado os ensinamentos trazidos por George Orwell, em 1984, na luta contra a opressão governamental na manipulação de registros, prezando pelo equilíbrio no uso de dados, delineando a proteção dos cidadãos e a ética governamental perante suas políticas de utilização e compartilhamento de dados, o que certamente ocasionará em uma verdadeira mudança na cultural.
A LGPDP desvela-se uma grande conquista, necessitando de muito resguardo e proteção diante dos avanços tecnológicos, levando em conta os erros advindos do passado, defronte aos sistemas técnicos operacionalizados, a exemplo de empresas de tecnologia, as quais desempenharam importante papel nos regimes totalitários (11), elevando a razão instrumental ao limite. Assim sendo, mesmo que a lei seja adiada, é importante que a sociedade adote suas diretrizes como usos e costumes, passando a exigir do governo e das empresas medidas eficazes para tutela desses direitos, com base nos princípios da boa-fé e da confiança, alicerces das relações jurídicas.
(1) EL PAÍS. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung-Chul Han. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html>. Acesso em: 22 mar. 2020.
(2) FOLHA DE SÃO PAULO. Israel começa a rastrear infectados por coronavírus com localização de celulares. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/israel-comeca-a-rastrear-infectados-por-coronavirus-usando-localizacao-dos-celulares.shtml>. Acesso em: 06 abr. 2020.
(3) VALOR ECONÔMICO. Europa passa dos 160 mil casos de coronavírus, o dobro da China. Disponível em: <https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/03/22/europa-passa-dos-160-mil-casos-de-coronavrus-o-dobro-da-china.ghtml>. Acesso em: 06 abr. 2020.
(4) BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 108.
(5) BBC. Coronavírus: governo brasileiro vai monitorar celulares para conter pandemia. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52154128>. Acesso em: 03 abr. 2020.
(6) UOL. Governo volta atrás sobre monitorar celulares para conter pandemia. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/04/13/bolsonaro-veta-uso-de-dados-de-celulares-para-monitorar-isolamento.htm>. Acesso em 16 abr. 2020.
(7) GLOBO. SP usa sistema de monitoramento com sinais de celulares para localizar aglomeração de pessoas no estado. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/09/sp-usa-sistema-de-monitoramento-com-sinais-de-celulares-para-localizar-aglomeracao-de-pessoas-no-estado.ghtml>. Acesso em: 16 abr. 2020.
(8) TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. MS nº 2.069.736-76.2020.8.26.0000. Impetrante: Caio Junqueira Zacharias. Impetrado: Governador Do Estado De São Paulo. Relator: Evaristo dos Santos. São Paulo. Publicação: 16 abr. 2020.
(9) STF. ADI 6387 MC, Relator(a): Min. Rosa Weber, julgado em 17/04/2020, publicado em Processo Eletrônico DJe-102. Divulgado em 27/04/2020. Publicado em 28/04/2020.
(10) Trata-se de uma série de ficção científica criada por Charlie Brooker, inicialmente reproduzida na televisão britânica, sendo posteriormente adquirida pela Netflix, centrada em temas que examinam a sociedade moderna e as consequências imprevistas na tecnologia e comunicação no século XXI, conforme: EL PAÍS. ‘Black Mirror’: todos os episódios, organizados do pior para o melhor. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/11/cultura/1515697182_485240.html>. Acesso em: 28 jun. 2019.
(11) UOL. Volks, BMW, Hugo Boss: essas e outras gigantes ajudaram Alemanha nazista. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/09/12/empresas-nazismo.htm>. Acesso em: 17 abr. 2020.