O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL POR EXCESSO DE PRAZO

Quando o Estado toma conhecimento da prática de determinado delito, surge o poder-dever de aplicar a respectiva sanção penal prevista em lei. Para que isso seja possível, é necessário que o titular da ação penal (Ministério Público, no caso de ação penal pública; artigo 24 do Código de Processo Penal) ou o ofendido ou quem tenha a qualidade para representá-lo (no caso de ação penal privada; artigo 30 do CPP) apresente os fatos e os fundamentos jurídicos perante o Poder Judiciário; este, após o devido processo penal, assegurados o contraditório e a ampla defesa por parte do acusado, decidirá nos limites dos fatos que lhe são apresentados.

Todavia, a denúncia ou queixa-crime deve ser necessariamente instruída com um suporte probatório mínimo, de modo que os fatos narrados encontrem alguma ressonância em elementos concretos obtidos na fase pré-processual, a demonstrar que o fato é aparentemente típico, ilícito e culpável, além de indícios de quem seja o seu autor, sob pena de a denúncia ou queixa-crime ser sumariamente rejeitada pelo juiz por faltar a chamada justa causa para o exercício da ação penal (artigo 395, III, do CPP).

Nesse contexto, assume especial importância o inquérito policial, o qual, segundo Gustavo Henrique Badaró, “(…) é um procedimento administrativo realizado pela Polícia Judiciária, consistente em atos de investigação visando apurar a ocorrência de uma infração penal e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa exercê-la, bem como requerer medidas cautelares” [1].

O artigo 10 do Código de Processo Penal estabelece, como regra geral [2], o prazo de 30 dias para conclusão do inquérito policial, caso o indiciado esteja solto. O §3º do referido dispositivo legal prevê que é possível a prorrogação do prazo, a requerimento da autoridade policial, quando o fato for de difícil elucidação, hipótese em que as diligências necessárias deverão ser realizadas no prazo fixado pelo juiz.

Não se desconhece que, na prática, é muito raro que esse prazo legal seja rigorosamente observado, pois é fato notório o excessivo número de inquéritos policiais em andamento, o que, aliado à carência de recursos materiais e humanos, acaba por inviabilizar a conclusão das apurações no referido período, sendo comum e amplamente admitido pela jurisprudência a flexibilidade desse prazo, com a concessão de dilações sucessivas para a finalização das investigações policiais.

Contudo, a Emenda Constitucional nº 45/2004 introduziu no rol de direitos fundamentais contemplados na Constituição Federal (artigo 5º, LXXVIII) a garantia da razoável duração do processo. Como bem observam Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, “positiva-se, assim, no direito constitucional, orientação há muito perfilhada nas convenções internacionais sobre direitos humanos e que alguns autores já consideravam implícita na ideia de proteção judicial efetiva, no princípio do Estado de Direito e no próprio postulado da dignidade da pessoa humana”, sendo que “Na sua acepção originária, esse princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais” [3].

Os tribunais, constantemente chamados a julgar a (i)legalidade de investigações criminais que perduram há muitos anos, apreciam, levando-se em consideração a garantia constitucional da razoável duração do processo, diversos casos em que se discute a necessidade de se estabelecer algum limite temporal para que o Estado proceda ao encerramento de procedimentos investigatórios criminais instaurados para apurar alguma conduta em tese delitiva, seja mediante o oferecimento de denúncia em desfavor dos responsáveis, seja pelo arquivamento feito pela inexistência de materialidade delitiva ou pela ausência de provas suficientes à identificação de seus autores [4].

A análise jurídica que se fez em tais precedentes é que há direitos a serem ponderados. De um lado, o dever do Estado de investigar a materialidade e autoria de fatos em tese criminosos que chegam ao seu conhecimento. De outro, o do cidadão em se ver investigado em prazo razoável, pois, como bem aponta Eugênio Pacelli de Oliveira, “aceitar a eternização da investigação é ignorar os males — que não são poucos — que a só tramitação de um inquérito policial pode causar naquele apontado como autor da infração penal em investigação” [5].

Acentua esse quadro de constrangimento ilegal eventual indiciamento do até então suspeito no curso das investigações. Segundo defendem Aury Lopes Jr. e Ricardo Jacobsen Gloeckner, ao longo da persecução penal pelo Estado tem-se um sistema escalonado de sucessivos juízos acerca do fato investigado, interferindo no próprio status jurídico-processual do sujeito passivo. Assim, os referidos autores afirmam que “a suspeita é um grau inferior de convencimento, que antecede ao indiciamento e está baseada em um juízo de possibilidade, e não de probabilidade”, e que “com o ato formal de indiciamento, o suspeito passa a ser considerado indiciado, um grau mais elevado de submissão ao procedimento persecutório estatal” [6].

Assim, considerando que o ato de indiciamento, que é ato privativo do delegado de polícia [7], consiste na formal atribuição de autoria ou participação em infração penal, e, como pontua Renato Brasileiro de Lima, “produz efeitos extraprocessuais, pois aponta à sociedade a pessoa considerada pela autoridade policial como a provável autora do delito (…)” [8], bem como efeitos endoprocessuais, vez que o deixa passível de medidas cautelares pessoais, interferindo diretamente em seu estado de liberdade, e patrimoniais, como o bloqueio de bens, tem-se que, nessas hipóteses, em se tratando de indiciamento antes da conclusão das investigações, com muito mais razão o inquérito policial não pode prosseguir indefinidamente no tempo, pois o constrangimento é ainda mais acentuado em razão da gradual interferência do Estado em seu status libertatis e seu status dignitatis.

A propósito, o ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do RHC nº 106.041/TO, ponderou que [9]:

“Nosso Código, no Título II do Livro I, relativo ao Inquérito Policial (artigos 4º ao 23), faz diversas alusões à figura do ‘indiciado’, mas em nenhum dispositivo afirma em que consiste, ou em qual momento ocorre, o indiciamento formal do investigado ou suspeito. Com isso, não temos uma regulamentação e um controle normativo, como nos homólogos diplomas estrangeiros, sobre os prazos de duração do inquérito e a partir de qual momento o suspeito assume o status de indiciado.
E, se alguém é formalmente indiciado, passa a ter o seu nome incluído nos registros criminais, o que, entre outras consequências — como a afetação de sua imagem e honra perante a coletividade — permite, até que desapareça tal registro, ter sua situação agravada em futuros processos, em que, por exemplo, pode ser decretada medida constritiva a seu patrimônio ou a sua liberdade, por já estar sendo investigado em outro inquérito policial.
Entretanto, é possível que, mesmo sem haver indiciamento do investigado, venha ele, de algum modo, a ser afetado por medidas tomadas ao longo do inquérito, não apenas as que diretamente o afetem (por exemplo, busca e apreensão domiciliar, de documentos, interceptação telefônica, arresto e sequestro de bens, ou mesmo uma prisão preventiva), mas outras que, embora não interfiram em seu patrimônio ou em sua liberdade, lhe trazem desconforto ou constrangimento. Podem-se citar, como exemplo, seguidas intimações para depor como ‘declarante’; determinação para que compareça à delegacia para ser formalmente reconhecido; intimações, para prestar depoimento, de empregados da empresa da qual o suspeito é diretor; declarações da autoridade policial à imprensa de que investiga possíveis crimes cometidos pelo suspeito etc.
Em quaisquer dessas situações, parece-me razoável sustentar a possibilidade de que o Poder Judiciário, por meio de habeas corpus, realize um controle sobre a razoabilidade da duração do inquérito policial, porque, dum pendet, rendet, é dizer, enquanto dura, traz, de um lado, algum tipo de situação vantajosa para o Estado – que continua com a possibilidade de, enquanto não alcançada a prescrição, investigar o fato e a pessoa sobre quem recai a suspeita de autoria – e enseja, de outro lado, incalculável prejuízo para o indivíduo que, indiciado ou não, acaba por sofrer, no mínimo, o constrangimento de ter uma investigação direcionada à sua pessoa, com a perturbação de sua tranquilidade para seguir sua vida”.

Não é demais salientar, por fim, que o juiz, no sistema processual brasileiro, exerce o controle de legalidade na fase pré-processual da persecução penal pelo Estado [10], principalmente decidindo medidas sujeitas à reserva constitucional de jurisdição, que submete à esfera de decisão dos magistrados a prática de determinados atos que impliquem interferência na liberdade ou no patrimônio das pessoas, ou outro bem ou interesse constitucionalmente protegido, como, por exemplo, diligências de buscas domiciliares (CF, artigo 5º, XI), quebra do sigilo das comunicações telefônicas e telemáticas (CF, artigo 5º, XII) e ordem de prisão, salvo em caso de flagrância (artigo 5º, LXI).

Conclui-se, assim, que não obstante a possibilidade de flexibilização dos prazos legais para a conclusão das investigações operacionalizadas em inquérito policial, a manutenção das investigações não se justifica quando passado excessivo tempo de tramitação, a ser avaliado caso a caso, sem que as apurações tenham sido concluídas e sem a mínima perspectiva concreta de quando isso ocorra, deixando o sujeito passivo da persecução penal como eterno suspeito de supostos crimes e, muitas vezes, formalmente indiciado e com medidas cautelares restritivas de liberdade e seu patrimônio bloqueado pelo Estado, em investigação com vigência infinita. Tal situação de prolongamento indefinido, numa demonstração de visível ineficiência estatal, traz graves danos pessoais, mormente pela estigmatização decorrente da condição de suspeito de prática delitiva, o que não pode ser tolerada pelo Poder Judiciário por manifesta ofensa aos princípios da dignidade da pessoa humana, da razoável duração do processo e da razoabilidade.

_____________

[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 134.

[2] Há outros prazos previstos na legislação especial para a conclusão do inquérito policial quando o investigado estiver solto, como, por exemplo, o artigo 66 da Lei nº 5.010/66 (Lei que organiza a Justiça Federal de primeira instância), que fixa o prazo será de 30 dias; artigo 51, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), que prevê o prazo de 90 dias, podendo ser duplicados pelo juiz, ouvido o Ministério Público, a pedido justificado da autoridade de polícia judiciária; artigo 10, § 1º, da Lei nº 1.521/51 (crimes contra a economia popular), que prevê o prazo de dez dias; e o artigo 20 do Código de Processo Penal Militar, que prevê o prazo de 40 dias, prorrogável por mais 20 dias pela autoridade militar superior, desde que não estejam concluídos exames ou perícias já iniciados, ou haja necessidade de diligências indispensáveis à elucidação do fato.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 499/500.

[4] STJ: 6ª Turma – RHC 61.451/MG – relator ministro Sebastião Reis Júnior — DJe 15/3/2017, 6ª T. – HC 345349/TO — rel. min. Néfi Cordeiro — DJe 10/6/2016; 6ª T. – RHC 135.299/CE — rel. min. Antonio Saldanha Palheiro – DJe 25/3/2021; 6ª T. — HC 624.619/CE — rel. min. Olindo Menezes (des. conv.) — DJe 20/8/2021; 6ª T. — RHC 106.041/TO — rel. min. Sebastião Reis Júnior — DJe 10/8/2020; STF: 2ª T. — Inq 4.444 — rel. min. Gilmar Mendes; 2ª T. — Pet 8.090 — rel. min. Gilmar Mendes — 19/10/2021 (dec. mon.); 2ª T. — Pet 8.186 — red. p/ ac. min. Gilmar Mendes — DJe 6/4/2021; 2ª T. — Pet 7.833 — red. p/ ac. min. Gilmar Mendes — DJe 13/5/2021; 2ª T. — AgRg no Inq 4.393 — rel. min. Gilmar Mendes — DJe 12/5/2021; 2ª T. — AgRg no Inq 4.441 — rel. min. Dias Toffoli — DJe 20/11/2020 — 1ª T. — Inq 4.442 — rel. min. Luís Roberto Barroso (dec. mon.) — DJe 13/6/2018; 1ª T. — Inq 4.429 — rel. min. Alexandre de Moraes (dec. mon.) — DJe 14/6/2018.

[5] PACELLI, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência, 13ª ed. São Paulo: Grupo GEN, 2021, p. 69.

[6] LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 422.

[7] Digno de nota que Lei nº 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, trouxe importante avanço ao prever expressamente, no artigo 2º, § 6º, que “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.

[8] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, 9ª ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 196.

[9] STJ — 6ª T. — RHC 106.041/TO — rel. min. Sebastião Reis Júnior — DJe 10/8/2020. Na mesma ocasião, o ministro Rogério Schietti Cruz propôs os seguintes critérios para se verificar a razoabilidade nas sucessivas prorrogações dos prazos para a tramitação de inquéritos policiais: 1. A complexidade da investigação (número de possíveis autores, extensão da trama criminosa, caráter interestadual ou até transnacional das ilicitudes, envolvimento de pessoas com prerrogativa de foro e que, portanto, possam gerar deslocamento de competência ou submissão do inquérito à deliberação de autoridade judiciária diversa da competente para coinvestigados); 2. O comportamento eventualmente não colaborativo das pessoas chamadas a depor, por meio de não comparecimento aos atos para os quais tenham sido intimadas, fornecimento de endereços inexistentes ou errôneos etc.; 3. Necessidade de realização de perícias complexas ou de oitiva de testemunhas por carta precatória ou rogatória, ou necessidade de cooperação de outras autoridades, nacionais ou internacionais, para o esclarecimento de fatos objeto das investigações etc.; 4. A constatação de que as investigações se encontram paralisadas, sem nenhum ato concreto que denote o empenho para o esclarecimento dos fatos, após sucessivas prorrogações do prazo (artigo 10 do CPP)”.

[10] A importância do controle de legalidade do inquérito policial pelo Poder Judiciário foi reforçada com o advento da Lei nº 13.964/2019, apelidada de Pacote ou Lei Anticrime, que inseriu no sistema processual penal brasileiro o juiz das garantias (artigo 3º-B, VIII e IX, CPP).

Fonte: Conjur.com. Acesso em:18/01/2022

Artigos e Notícias