JUIZ DOS EUA PROPÕE PROJETO-PILOTO COM MAGISTRADOS CONDUZINDO O PLEA BARGAINING

Fonte: https://www.conjur.com.br/2019-fev-20/juiz-propoe-projeto-magistrados-conduzindo-plea-bargaining

Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2019, 12h44

 

Por João Ozorio de Melo

Nos EUA, quando o juiz federal Jed Rakoff fala, a comunidade jurídica escuta. Nos últimos anos, ele vem criticando muito o sistema de plea bargaining do país. Mas ele sabe que é impossível acabar com esse sistema que retira dos réus todos os direitos constitucionais, transfere aos promotores todos os poderes, incluindo o de coagir a defesa, e manda inocentes para a cadeia. Por isso, ele defende a reforma do sistema.

Para o juiz, a reforma do sistema de plea bargaining virá com seus próprios defeitos. Por isso, ele propõe a criação de um projeto-piloto de um sistema em que um juiz auxiliar conduza as negociações do plea bargaining, em vez do promotor. Em um artigo para o The New York Review of Books, intitulado “Por que inocentes admitem culpa”, ele diz que qualquer programa que acabe com a vergonha de mandar inocentes para a cadeia vale a pena.

Rakoff sugere usar um juiz auxiliar, chamado de magistrado nos EUA, para conduzir as negociações com o promotor e advogado de defesa — e não o juiz que irá presidir o julgamento — por uma razão muito simples: caso não se chegue a um acordo, a objetividade do juiz pode estar comprometida. O juiz auxiliar sequer deve relatar as negociações ao juiz.

A reunião do juiz auxiliar com o promotor e o advogado de defesa deve ser feita em um ambiente reservado e todos os participantes deverão ter os fatos e as provas colhidas até o momento, para servirem de base para as negociações. Em algumas circunstâncias, o juiz auxiliar poderá entrevistar testemunhas e examinar outras provas, reservadamente, para não comprometer as estratégias das partes.

O juiz auxiliar poderia até mesmo entrevistar o réu. Mas isso teria de ser feito de uma forma que não negasse ao réu seu direito constitucional de não se incriminar. O promotor não poderia fazer qualquer oferta de plea bargaining, enquanto o juiz auxiliar estivesse estudando o caso.

Quando o juiz auxiliar estiver pronto, ele pode se reunir separadamente com o promotor e advogado e fazer recomendações, tais como trancar o processo (se as provas forem muito fracas), proceder com o julgamento (se não houver uma oferta razoável de plea bargaining) ou celebrar um acordo na linha de seu entendimento do caso.

Nenhuma das partes seria obrigada a acatar a recomendação do juiz auxiliar. Mas a recomendação viria de “um terceiro neutro”, que é uma autoridade judicial, perante a qual os promotores e advogados de defesa teriam que comparecer em muitos outros casos. Procedimentos semelhantes acontecem na área civil com mediadores de conflitos.

Contrato de adesão
Os direitos dos réus a que o juiz Rakoff se refere e que sempre são negados a ele quando há uma negociação de plea bargaining são os previstos na Sexta Emenda da Constituição dos EUA: no julgamento, o réu terá assistência de um advogado, que irá confrontar e fazer a inquirição cruzada de seus acusadores e apresentar provas a seu favor. Ele poderá ser condenado por um júri imparcial, se os jurados chegarem ao veredicto unânime de que é culpado e assim declará-lo publicamente.

No sistema de plea bargaining, o réu abre mão não só desses direitos, mas também o de recorrer a um tribunal de segundo grau.

A Suprema Corte sugeriu, em uma decisão, que o plea bargaining é um arranjo de contrato justo e voluntário entre duas partes relativamente iguais. Para o juiz Rakoff, isso é um “mito total”. O plea bargaining é muito mais um “contrato de adesão’, no qual uma parte pode, efetivamente, forçar sua vontade à outra parte.

Parte do problema deriva do fato de que os promotores, como os defensores públicos, lidam com sobrecarga de processos. Assim, eles são orientados a jogar duro com a defesa, para obter um acordo e evitar o julgamento. Outra parte deriva da legislação que estabeleceu sentenças mínimas mandatórias e por duras diretrizes de sentenças para certos tipos de crime.

Por exemplo, o promotor pode informar o advogado que pode acusar o réu de posse ou tráfico de uma certa quantidade de drogas e formação de quadrilha, que significa de 10 a 20 anos de prisão. Mas, se ele aceitar o acordo, pode acusá-lo de venda de apenas uma pequena quantidade de droga, que implica sentença mínima de menos de 2 anos.

Na negociação inicial, o promotor sabe muito, até porque dispõe de relatórios policiais, e o advogado de defesa sabe pouco, diz o juiz. Se ele não topar o acordo na primeira oferta, o promotor poderá piorá-la em uma segunda negociação. Em muitos casos, o advogado e seu cliente discutem a situação e o réu, pensando no risco de pegar mais de 20 anos de prisão e preocupado com sua família, decide “garantir” a pena menor.

Segundo Jed Jakoff, dos 2,2 milhões de prisioneiros nos EUA, mais de 2 milhões aceitaram um acordo de plea bargaining, sendo culpados ou inocentes. Rakoff citou dados do Registro Nacional de Libertações, que confirmam a condenação de inocentes à prisão. De 1.428 presos inocentes libertados nos últimos anos, 151 (mais de 10%) haviam feito admissão falsa de culpa em acordos de plea bargaining.

O Projeto Inocência confirmou essa percepção: nos últimos 300 casos de libertação de presos inocentes, graças ao trabalho da entidade, mais de 30 (ou seja, mais de 10%) se referiam a réus que fizeram acordo de plea bargaining, mesmo sendo inocentes, para não pegar penas tão altas como prisão perpétua.

Segundo o juiz, as maiores vítimas de um mau acordo de plea bargaining são jovens, pessoas pobres com menor capacidade intelectual e pessoas avessas a risco, por causa das circunstâncias de suas vidas. Outra grande vítima é a defesa.

Vídeo 

O juiz Jed Rakoff demonstrou, em um vídeo publicado no YouTube, sua aversão ao atual sistema de plea bargain nos EUA.

Leia a tradução:

“Em reação às crescentes taxas de criminalidade, então, o Congresso e os estados impuseram todos os tipos de penalidades muito severas: sentenças obrigatórias de cinco, dez, 15 e 20 anos, em alguns casos ainda mais.

E por essa e outras razões, quando essas leis entraram em vigor, havia uma tremenda penalidade para quem fosse a julgamento. Você pegaria uma sentença muito maior se fosse a julgamento do que se você se confessasse culpado, particularmente se você pudesse negociar uma pena menor pela confissão ou alguma coisa desse tipo.

As estatísticas são muito impressionantes. A partir de meados dos anos 80 e até o presente, em vez de 15% a 20% de todos os casos criminais indo a julgamento, esse percentual caiu rapidamente para cerca de 3% — e esse é o patamar onde estamos hoje.

E uma porção disso são pessoas realmente, factualmente, inocentes, que decidem confessar a culpa porque não podem correr o risco de, se forem a julgamento e forem condenados, pegar 10, 15, 20 anos ou mais, com efeitos devastadores para eles e suas famílias.

Assim elas preferem, apesar de serem inocentes, fazer um acordo de admissão de culpa, que resulte em uma pena de prisão de um ou dois ou mesmo cinco anos, em vez de assumir o risco.

Isso não é uma especulação. É um fato comprovado. E o Projeto Inocência (Innocence Project) tem fornecido parte da prova de que mais de 300 pessoas, que o Projeto Inocência provou que eram factualmente inocentes e cujas condenações, frequentemente de crimes mais sérios, se comprovaram erradas e isso levou a suas libertações.

Dessas pessoas, cerca de 10% concordaram em realmente se declarar culpadas. Confessaram crimes como homicídio, confessaram crimes como estupro, apesar de não terem cometido esses crimes. E mais tarde foi provado, definitivamente, que elas não cometeram esses crimes.

Mas não poderiam assumir o risco de pegar pena de morte ou de prisão perpétua — ou, de alguma forma, sentenças muito rigorosas, caso fossem a julgamento e perdessem.

Assim, isso é um problema sério. Qual o tamanho do problema em toda a nação ninguém sabe com segurança. É realmente uma avaliação dos réus sobre suas chances.

E o fato de que eles são inocentes não significa que serão absolvidos, mesmo que seriam. A combinação dessas pressões psicológicas os leva a confessar a culpa.

A lei coloca mais poderes nas mãos dos promotores. O promotor recebe ordens de seus superiores: “Acuse o réu dos crimes mais graves que você puder, que você tiver qualquer chance de provar, porque isso irá encorajar confissões de culpa e nós temos muito mais casos do que podemos administrar, de forma que precisamos de confissões de culpa para nos livrarmos deles”.

Em muitos tribunais estaduais, onde a pauta é sobrecarregada, o defensor público pode se reunir com seu cliente por cinco minutos, antes de formalizar um acordo com o promotor.

E os promotores podem fazer 40 acordos em uma manhã. E assim o juiz terá de aprovar acordos com 40 réus e essas serão alocuções muito atenuadas.

Assim, depois de ver isso em minha corte, não de maneiras tão extremas mas preocupantes, comecei a examinar a matéria.

Também devo dizer que, como qualquer juiz nesse país, fui impactado pelo Projeto Inocência, porque o que o Projeto Inocência tem mostrado, além de qualquer outra coisa, é que nosso sistema jurídico é muito menos perfeito do que pensávamos que era.”

 

João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

 

 

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