Leticia Dombroski
Advogada no escritório Delivar de Mattos & Castor Advogados
Pós-Graduanda em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em 28.11.2019, decidiu, por maioria, no bojo do Recurso Extraordinário (RE) nº 1055941/SP, a legitimidade do compartilhamento de dados cobertos por sigilo fiscal e bancário aos órgãos de persecução penal para fins de investigação criminal.
Como muito bem destacado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, o compartilhamento de informações pressupõe o prévio processo administrativo fiscal nos termos da legislação vigente, com sérios indicativos de prática criminosa, para efeito de promoção da responsabilidade penal, não se tratando, por ora, da transferência ou repasse ao Ministério Público ou a autoridade policial de dados aleatórios de forma indiscriminada.
Anteriormente, em 16.09.2016, o Plenário dessa Corte Suprema já havia confirmado a constitucionalidade do artigo 6º, da Lei Complementar nº 105 de 2001, ao entender compatível com a Constituição Federal – garantia do sigilo bancário – o Fisco obter informações financeiras junto as instituições bancárias sem autorização judicial prévia, limitando-se a possibilidade quando em curso prévio processo administrativo e o exame seja indispensável a autoridade fiscal para constituição de eventual crédito tributário.
O Supremo Tribunal Federal, nas duas oportunidades acima destacadas, trouxe à baila duas questões prefaciais a entender pela constitucionalidade da legitimidade de compartilhamento de dados cobertos por sigilo sem a devida decisão judicial antecedente: i) a necessidade de prévio e anterior processo administrativo fiscal em curso; e ii) indispensabilidade da medida para promoção de responsabilidade penal e fiscal.
Expõe-se que o STF pretende legitimar o compartilhamento de dados protegidos por força constitucional sem decisão judicial para fins de responsabilização penal e/ou fiscal, mas, simultaneamente, impõe limites ao compartilhamento indiscriminado, a fim de que não se caracterizar uma verdadeira caça às bruxas em detrimento aos direitos e garantias constitucionais do cidadão.
Em 05.08.2020, os partidos políticos Rede Sustentabilidade (REDE) e Partido Socialista Brasileiro (PSB) ingressaram com a ação direita de inconstitucionalidade perante ao Supremo Tribunal Federal, posteriormente autuada sob o nº 6529, de Relatoria da Ministra Cármen Lúcia, na qual suscitam a incompatibilidade do parágrafo único do artigo 4º, da Lei nº 9.883 de 1999, vez que endentem não ser possível o compartilhamento de dados com reserva de informações sujeitas à jurisdição – tais como dados bancários, fiscais e telefônicos – com a Agência Brasileira de Inteligência.
Liminarmente, por maioria absoluta, o Plenário do STF concedeu parcialmente a medida cautelar para dar interpretação conforme à Constituição Federal ao parágrafo único do artigo 4º, da Lei nº 9.883/99, nos seguintes termos: “a) os órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência somente podem fornecer dados e conhecimentos específicos à ABIN quando comprovado o interesse público da medida, afastada qualquer possibilidade desses dados atenderem interesses pessoais ou privados; b) toda e qualquer decisão que solicitar os dados deverá ser devidamente motivada para eventual controle de legalidade pelo Poder Judiciário; c) mesmo quando presente o interesse público, os dados referentes às comunicações telefônicas ou dados sujeitos à reserva de jurisdição não podem ser compartilhados na forma do dispositivo em razão daquela limitação, decorrente do respeito aos direitos fundamentais; e d) nas hipóteses cabíveis de fornecimento de informações e dados à ABIN, é imprescindível procedimento formalmente instaurado e a existência de sistemas eletrônicos de segurança e registro de acesso, inclusive para efeito de responsabilização”.
A recente decisão proferida, embora, a priori, pareça destoar de outros entendimentos consolidados pela Corte, uma vez que em duas oportunidades os direitos à privacidade são relativizados, e recentemente, postos em principal patamar, mas, na verdade, apenas os reafirmam.
Como já dito, os entendimentos exarados anteriormente autorizam o compartilhamento de dados fiscais e bancários – protegidos pela reserva de jurisdição – as autoridades da persecução penal – frisa-se, ato duvidoso à segurança dos direitos e garantias individuais – mesmo sem autorização judicial, desde que em curso processo administrativo fiscal que importe na instauração de procedimento investigatório.
Por exemplo do compartilhamento entre Fisco e Ministério Público, o que se espera, é a existência motivada para essa transferência de dados, um procedimento fiscal prévio que indique objetivamente dados imprescindíveis, por exemplo, para viabilizar o início da persecução penal.
Quer dizer, há um plano de fundo para o esse compartilhamento: uma atuação legítima, plausível e fundamentada, com indícios de prática de ilícito-fiscal ou criminoso que motivam explicitamente a necessidade do repasse de dados.
No recentíssimo debate trazido à baila na Corte, a questão é justamente a incompatibilidade constitucional garantia pelo direito à privacidade, por exemplo, da discricionariedade da ABIN em requisitar de forma imotivada informações aos órgãos que compõe o sistema de inteligência do Brasil, sem necessidade de existir prévio procedimento e incerta fundamentação.
É certo que o poder estatal não é absoluto, estando sujeito a estrita observância dos ditames constitucionais e legais, principalmente frente aos direitos e garantias do cidadão, sendo esses últimos o limite da atuação de qualquer ato advindo do poder público – seja uma decisão judicial ou ato político.
Por óbvio, independente da ABIN ser o órgão central de inteligência, a atuação deve estar limitada invariavelmente aos preceitos constitucionais, o acesso aos dados cobertos por reserva de jurisdição ainda deve ser pleiteado junto ao Poder Judiciário, de forma motivada e fundamentada, estando sujeito ao controle de legalidade realizado por este poder.
Em um exercício de substituição de “ABIN” por “Receita Federal” ou “Ministério Público”, exemplificativamente, a máxima permanece: o respeito aos direitos constitucionais deve pautar toda e qualquer atuação do Poder Público (e particular).
Pretender o contrário, ou seja, constitucionalizar a banalização dos direitos e garantias individuais e coletivas inerentes a todos cidadãos sem saber qual é a intenção do conhecimento dos dados é atentar contra à Constituição Federal e seus fundamentos e objetivos basilares, como a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.