Por Analice Castor de Mattos
O comércio é uma troca que implica necessariamente em reciprocidade. Denomina-se internacional quando participam da relação contratual sujeitos situados em países distintos. Estes, em razão de sua soberania, podem autorizar — ou não — a transação comercial acordada entre as partes sob a ótica das regras de comércio exterior estabelecidas por cada um dos envolvidos, como esclarece Roosevelt Baldomir Sosa:
O comércio internacional, como área específica, é percebido nas trocas comerciais havidas entre as diversas nações que compõem a comunidade mundial, inscrevendo-se na economia internacional e submetendo-se ao Direito Internacional Público. O grande ator, nesse contexto, é o Estado soberano, que consente em aceitar as regras universais vigentes[1].
Pode-se dizer, assim, que, internamente, comércio exterior se refere à relação do Brasil, como ente de Direito Internacional Público, com os demais países, cujas trocas comerciais realizadas por intermédio de contratos internacionais, quer seja de produtos ou serviços, dependem das legislações e políticas comerciais sobre importação e exportação dos governos inseridos na relação negocial.
Portanto, comércio internacional e comércio exterior não se confundem, mas se complementam, já que um depende do outro.
O comércio exterior passou a ter maior relevância na política comercial brasileira a partir do final da Guerra Fria, em 1989, que substituiu a ordem econômica bipolar, liderada pelos EUA e a URSS, por uma nova ordem internacional integrada por vários países.
No Brasil, em 1990, já havia iniciado um processo de abertura comercial durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello, com a implantação de uma política que adotou a redução de alíquotas de imposto de importação e diminuiu a proteção da indústria doméstica, com o objetivo de inserir o país no mercado internacional e fomentar a concorrência, propiciando a modernização da indústria no médio e longo prazo.
Assim, a abertura dos portos ao mercado internacional surgiu da necessidade de abastecer o mercado nacional de produtos que não eram produzidos aqui e, também, de ampliar o alcance comercial dos produtos nacionais destinados à exportação.
No entanto, o que se observa ao longo dos anos é que o Brasil cada vez mais exporta commodities e importa produtos acabados, criando um processo denominado “desintrustrialização”[2], resultante do custo Brasil que é muito alto, principalmente em razão de encargos trabalhistas e tributários. Em muitos casos, importar o produto pronto e revendê-lo gera um lucro muito maior e ainda possibilita a diminuição de risco de futuros passivos.
Esse processo tem gerado um grave impacto socioeconômico no país com relação à queda de empregos e fechamento de indústrias[3]. Em vez de desonerar o empresário, o governo brasileiro adota medidas protecionistas, que geram insegurança para os importadores e prejuízos para os consumidores, que ficam obrigados a comprar produtos de qualidade inferior, pagando o preço mais caro[4].
Além disso, existe uma grande insegurança jurídica nos atos do governo brasileiro contrários à boa-fé objetiva do administrado. Exemplo disso foi a majoração surpresa do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos veículos importados ao Brasil fora do Mercosul, no governo da presidente Dilma Roussef, em 2011, sem qualquer motivação, pelo Decreto Governamental 7.567/2011[5]. E pior, constou no referido ato normativo que sua vigência fosse imediatamente à data de sua publicação, de forma completamente arbitrária e inconstitucional, pois contrária ao princípio da anterioridade nonagesimal, previsto no artigo 150, III, alínea “c” da Constituição Federal, de aplicação obrigatória aos casos de majoração da alíquota do IPI.
Nesse caso, foi necessário que o Supremo Tribunal Federal, após ser provocado por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.661/DF[6], determinasse a suspensão da vigência do Decreto 7.567/2011 até que transcorresse o prazo previsto pela CF/88 de 90 dias.
A insegurança também tem se verificado nas decisões judiciais, cujos entendimentos jurisprudenciais em matéria tributária, já pacificados nos tribunais superiores, vêm sendo modificados de forma favorável ao governo. A exemplo do caso das teses jurídicas da não incidência do IPI na importação de veículo por pessoa física[7] ou na importação de produto industrializado[8].
Ademais, apesar de o Brasil apostar na modernização de seus portos[9] e na melhora do controle aduaneiro a fim de otimizar o comércio exterior, possibilitando melhor fluxo das importações e exportações, ainda se verifica uma série de problemas nas operações do setor, que decorrem, principalmente, da burocracia do controle aduaneiro, dos altos custos portuários, da elevadíssima carga tributária, da oscilação do câmbio e também da necessidade de melhores condições de financiamentos à exportação[10].
O necessário estudo especializado da matéria justifica a autonomia didática do Direito Aduaneiro, ainda que sujeito aos princípios e normas de outros ramos do Direito. Como afirma Regina Helena Costa, ao citar a lição de José Lence Carluci, a autonomia científica do Direito Aduaneiro decorre dos seguintes fatores: “A sua origem consuetudinária, a utilização de técnica específica (expedientes e conceitos próprios), o acelerado dinamismo de seu objeto, a importância do fator econômico, que lhe molda os contornos, o diferenciado contencioso aduaneiro, a influência preponderante dos tratados internacionais e as variedade de suas fontes, estampadas em atos normativos de diversa natureza. (Ob.Cit, p. 23-25)”[11].
Em suma, como foi muito bem elucidado pelo saudoso professor Belmiro Valverde Jobim Castor, “o Brasil não é para amadores”[12], especialmente no âmbito do comércio exterior, que dispõe de uma complexa estrutura. Essa, composta de diversos controles (aduaneiro, fiscal, cambial, sanitário etc.), realizados por órgãos intervenientes[13], numa teia de relações existentes entre importadores, exportadores, bancos, despachantes aduaneiros, agentes de carga, operadores de transporte, operadores portuários, depositários, administradores de recintos alfandegados, peritos e assistentes técnicos, entre outros. Além dos sistemas integrados de fiscalização, quais sejam, Siscomex, Siscarga e o Siscoserv.
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[1] SOSA. Roosevelt Baldomir. A Aduana e o Comércio Exterior, Ed. Aduaneiras, 1995, p.33.
[2] “Promissora na década de 1980, a indústria brasileira entrou em declínio e hoje representa apenas pouco mais de 10% do Produto Interno Bruto do país” (Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37432485, Data 21/9/2016, Data de acesso 5/9/2017).
[3] “Têxteis centenárias enfrentam desafios para manter negócios. Uma fábrica de tecidos fechou as portas após 121 anos de história. A alta carga tributária, o elevado custo de produção e o aumento dos produtos importados no mercado nacional, principalmente os confeccionados, fizeram com que perdêssemos espaço. Por outro lado, temos empresas crescendo a dois dígitos” (Fonte: http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2013/09/texteis-centenarias-enfrentam-desafios-para-manter-negocios.html. Data 12/9/2013. Data de acesso 5/9/2017).
[4] “A revista Forbes, uma das mais conceituadas publicações de economia e finanças do mundo, publicou um contundente artigo em seu site a respeito dos preços dos carros no Brasil. Entitulado ‘Brazil’s Ridiculous 80,000 Jeep Grand Cherokee’ — O ridículo Jeep Grand Cherokee de 80 mil dólares do Brasil —, o texto usa como exemplo o valor cobrado pelo recém-chegado modelo no mercado nacional e é assinado pelo colaborador Kenneth Rapoza, responsável pela cobertura de Brasil, Rússia, Índia e China. Rapoza culpa impostos de importação e outras taxas pelo preço excessivo e faz a comparação com o mercado americano. ‘Em Miami, com o mesmo valor é possível comprar três unidades do mesmo modelo’, disse o jornalista. ‘Os 28 mil dólares cobrados nos EUA correspondem a cerca de metade da renda média anual de um americano, mas os 89,5 mil dólares no mercado brasileiro estão a anos luz da média da renda do brasileiro’. Embora o jornalista não cite, é importante lembrar que esse padrão não acontece somente com a Chrysler e o Cherokee, mas com todos os modelos à venda por aqui em relação aos mercados estrangeiros. (Fonte: http://quatrorodas.abril.com.br/noticias/ridiculo-diz-forbes-sobre-precos-de-carros-no-brasil/ – data 13/8/2012, data de acesso 5/9/2017). Vide também o artigo Tributos triplicam o preço do carro importado no Brasil, “um veiculo hipotético importado por 100 mil no exterior, chega ao consumidor pelo valor estimado de R$ 340 mil”. Por Gustavo Porto, Agência Estado, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 14 de agosto de 2012 (Fonte: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tributos-triplicam-preco-do-carro-importado-no-brasil-diz-abeiva,123109e. Data 14/8/2017, Data de acesso 5/9/2017).
[5] Fonte: http://carros.uol.com.br/noticias/redacao/2011/09/15/governo-aumenta-ipi-dos-carros-importados-e-atinge-marcas-chinesas.htm. Data 15/9/2011. Data de acesso 5/9/2017.
[6] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – DECRETO – ADEQUAÇÃO. Surgindo do decreto normatividade abstrata e autônoma, tem-se a adequação do controle concentrado de constitucionalidade. TRIBUTO – IPI – ALÍQUOTA – MAJORAÇÃO – EXIGIBILIDADE. A majoração da alíquota do IPI, passível de ocorrer mediante ato do Poder Executivo – artigo 153, § 1º –, submete-se ao princípio da anterioridade nonagesimal previsto no artigo 150, inciso III, alínea “c”, da Constituição Federal. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – IPI – MAJORAÇÃO DA ALÍQUOTA – PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE NONAGESIMAL – LIMINAR.
[7] No final de 2016, o STJ alterou o entendimento referente à incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) nas operações de importação de veículos automotores por pessoa natural para uso próprio no sentido de que “incide o imposto de produtos industrializados na importação de veículo automotor por pessoa natural, ainda que não desempenhe atividade empresarial e o faça para uso próprio”. Anteriormente, tanto o STF como o STJ entendiam que não incidia IPI na importação de veículos para uso próprio, tendo, inclusive, o STJ apreciado a matéria em sede de recurso especial repetitivo: “É firme o entendimento no sentido de que não incide IPI sobre veículo importado para uso próprio, tendo em vista que o fato gerador do referido tributo é a operação de natureza mercantil ou assemelhada e, ainda, por aplicação do princípio da não cumulatividade” (STJ. 1ª Seção. REsp 1.396.488/SC, rel. min. Humberto Martins, julgado em 25/2/2015). Precedentes do STF neste mesmo sentido: RE 550.170 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgado em 7/6/2011; RE 255.090 AgR, rel. min. Ayres Britto, julgado em 24/8/2010.
[8] A 1ª Turma do STJ adotava o entendimento da não incidência do IPI na comercialização de produtos industrializados importados desde 2006. Todavia, em 2013, referido posicionamento foi modificado, em razão da nova tese adotada pela 2ª Turma do STJ, no sentido da licitude da incidência do tributo na nacionalização e na comercialização, já que o estabelecimento importador é equiparado à industrial por lei. Ocorre que a tese jurídica da não incidência voltou a ser confirmada pelo STJ, após decisão da 1ª Seção proferida em 11 de junho de 2014, que unificou a jurisprudência divergente das turmas, prevalecendo o entendimento da 1ª Turma (EREsp 1.384.179/SC; EREsp 1.393.102/SC; EREsp 1.398.721/SC; EREsp 1.400.759/RS; EREsp 1.411.749/PR). Não obstante, o STJ, no julgamento do Recurso Repetitivo 1.403.532/SC (tema 912 – tese publicada em dezembro de 2015), firmou seu entendimento pela legalidade da incidência do IPI na saída da mercadoria, independentemente do processo de industrialização após o desembaraço aduaneiro. Ainda controvertida, atualmente, a matéria se encontra pendente de análise pelo STF dentro da sistemática da repercussão geral desde julho de 2016, com o tema 906: “Violação ao princípio da isonomia (art. 150, II, da Constituição Federal) ante a incidência de IPI no momento do desembaraço aduaneiro de produto industrializado, assim como na sua saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno”. Por decisão do ministro Marco Aurélio, relator do caso, os processos do mesmo tema que ainda aguardam julgamento deverão ser sobrestados somente quando estiverem prontos para serem analisados pelo STF, ou seja, após a decisão de segunda instância.
[9] Lei 12.815, de 5 de junho de 2013. Dispõe sobre a exploração direta e indireta pela União de portos e instalações portuárias e sobre as atividades desempenhadas pelos operadores portuários.
[10] Os dados estatísticos de desempenho no comércio exterior podem ser verificados no site: https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/resultados/aduana
[11] COSTA, Regina Helena. Notas sobre a Existência de um Direito Aduaneiro. in Importação e exportação no direito brasileiro, coordenação Vladimir Passos de Freitas. São Paulo: RT, 2006, p. 20.
[12] Título de seu livro sobre ciências políticas, lançado em 2000, pela Editora Ebel.
[13] São os órgãos gestores e intervenientes (vide lista dos órgãos anuentes na fonte: http://www.mdic.gov.br/comercio-exterior/portal-unico/847-portal-unico-de-comercio-exterior. Data do acesso: 5 de setembro de 2017).
Analice Castor de Mattos é sócia da área tributária aduaneira do Delivar de Mattos & Castor Advogados, professora de Direito Aduaneiro e mestre em Direito Econômico pela PUCPR.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2018-out-21/analice-mattos-estrutura-complexa-comercio-exterior