Os governadores dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Acre, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro e do Distrito Federal propuseram Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, em 03/05/2024, em face do § 2º, bem como da expressão “e a publicidade” constante do § 4º, ambos do artigo 35-A da Lei federal nº 13.756, de 12 dezembro de 2018, na redação dada pela Lei federal nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023 (Lei das Bets).
O julgamento do caso foi retomado pelo STF, com pautada virtual agendada para 19/09/2025 a 26/09/2025, mas já é possível identificar que a maioria dos ministros entende pelo direito de uma mesma empresa poder operar loterias em estados diferentes e fazer propaganda desses serviços em qualquer lugar.
Basicamente, os artigos que os governadores entendem ser inconstitucionais são os seguintes:
- 2º Ao mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica será permitida apenas 1 (uma) única concessão e em apenas 1 (um) Estado ou no Distrito Federal. (Incluído pela Lei nº 14.790, de 2023;
- 4º A comercialização e a publicidade de loteria pelos Estados ou pelo Distrito Federal realizadas em meio físico, eletrônico ou virtual serão restritas às pessoas fisicamente localizadas nos limites de suas circunscrições ou àquelas domiciliadas na sua territorialidade. (Incluído pela Lei nº 14.790, de 2023);
Para os representantes estaduais, o § 2º, bem como da expressão “e a publicidade” constante do § 4º, ambos do artigo 35-A da Lei federal nº 13.756, de 12 dezembro de 2018, violam a constituição da seguinte forma:
“(i) o pacto federativo e o objetivo fundamental de redução da desigualdade regional (artigos 1º, “caput” e 3º, inciso III);
(ii) o princípio da igualdade (artigo 5º, “caput”) e a proibição de criar diferenças entre brasileiros ou preferências entre si (artigo 19, inciso III);
(iii) a competência dos Estados para explorar serviços públicos estaduais (artigo 25, § 1º);
(iv) a igualdade de condições a todos os concorrentes no processo de licitação pública, exigindo-se apenas as qualificações técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações (artigo 37, XXI);
(v) os princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor, previstos, respectivamente, nos incisos IV e V do artigo 170;
(vi) a possibilidade de delegação do serviço à iniciativa privada, conforme o disposto no artigo 175.”
Para eles, as restrições inconstitucionais impostas pelos §§ 2º e 4º do artigo 35-A da Lei federal nº 13.756, de 2018, na redação dada pela Lei federal nº 14.790, de 2023, impactam diretamente o projeto de delegação à iniciativa privada dos serviços públicos lotéricos dos Estados e do Distrito Federal, uma vez que:
“(i) reduzem o número de potenciais licitantes àqueles que ainda não celebraram contratos para prestação de serviços lotéricos com outros Estados ou com o Distrito Federal. Tal redução representa evidente prejuízo à ampla competitividade da licitação, indispensável para seleção da proposta mais vantajosa para o Estado de São Paulo. A título meramente exemplificativo, insta esclarecer que três dos maiores “players” mundiais na área de loterias estarão impedidos pelo artigo 35-A, § 2º da Lei federal nº 13.756, de 2018, de participar do certame que vier a ser aberto pelo Estado de São Paulo, porque já celebraram contratos com outros Estados.
(ii) favorecem um ambiente de competição predatória entre os Estados e o Distrito Federal, com o objetivo de disputar, entre si, as empresas com maior qualificação técnica e econômica para que participem de suas respectivas licitações;
(iii) podem inviabilizar que os Estados e o Distrito Federal deleguem o serviço à iniciativa privada, obrigando-o à exploração direta, em especial no que se refere à modalidade lotérica denominada “aposta de quota fixa”;
(iv) beneficiam os serviços lotéricos federais em detrimento dos serviços lotéricos estaduais;
(v) desrespeitam a competência material dos Estados e do Distrito Federal, inclusive no que se refere à publicidade das respectivas Loterias instituídas por esses entes federados. Evidenciada, portanto, a legitimidade dos Governadores signatários para o ajuizamento da presente ação direta em face do § 2º, bem como da expressão “e a publicidade” constante do § 4º, ambos do artigo 35-A da Lei federal nº 13.756, de 12 dezembro de 2018, na redação dada pela Lei federal nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023.”
Ainda, sobre a questão da publicidade, destacaram o seguinte:
“A mesma lógica se verifica com os serviços públicos lotéricos. A efetiva prestação do serviço ocorre apenas com a concreta comercialização de bilhetes lotéricos e a realização de apostas físicas ou virtuais – condutas reservadas pelo mesmo § 4º a quem estiver fisicamente localizado no território do Estado ou possuir domicílio na territorialidade. A publicidade de tais serviços, porém, pode perfeitamente ser direcionada a pessoas localizadas fora do território estadual, dado que o receptor da publicidade ainda não é um usuário do serviço, mas apenas um potencial usuário.
Reitere-se que a atividade lotérica é considerada um serviço público. Fosse estendida a lógica inserida no § 4º para as demais atividades, também poderia ser admitida a restrição de publicidade de quaisquer serviços públicos estaduais a usuários localizados fora dos limites territoriais do respectivo ente da federação, o que se revela desprovido de razoabilidade.”
Dias antes de ocorrer o leilão para a concessão de serviços lotéricos no estado de São Paulo, o ministro Luiz Fux, relator do caso, concedeu o pedido liminar para suspender a eficácia dos dispositivos legais atacados, em 23 de outubro de 2024. Interessante citar trecho do seu voto:
“À luz dessa premissa fundamental e forte na consideração de que, por força dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, o exercício de atividades econômicas por particulares deve ser protegido da coerção arbitrária do Estado, assentei meu entendimento de que a restrição constante do §2º do art. 35-A da Lei nº 13.756/2018 (incluído pela Lei nº 14.790/2023) – que, repita-se, impede que um mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica celebre contrato de concessão de serviços lotéricos em mais de um Estado-membro – não encontra amparo na Constituição, seja porque não se encontra prevista no art. 175 da CF, seja porque acaba por impor aos Estados de menor população a celebração de contratos de concessão com empresas tendencialmente menos qualificadas, violando claramente o pacto federativo
(…)
Com efeito, em uma realidade atual de um mercado globalizado e de ampla difusão dos meios de comunicação, pode fazer sentido ao Estado que pretende comercializar seus produtos lotéricos realizar ações de marketing em eventos realizados fora de seu território, desde que a transmissão destes eventos alcance o público fisicamente localizado em seus limites. É o caso, por exemplo, da realização de ações de marketing em geral em eventos esportivos ou mesmo do sistema de patrocínios a atletas e torneios – mecanismos estes que, diga-se de passagem, são amplamente utilizados pela Loteria Federal.
(…)
Neste contexto, não parece razoável, por exemplo, que o serviço lotérico de um determinado Estado não possa patrocinar um atleta ou uma equipe profissonal de futebol que vá competir em outra unidade da federação ou mesmo fora do país; não parecer razoável, outrossim, que uma loteria estadual não possa, por exemplo, realizar uma ação de marketing em um jogo da seleção brasileira de futebol no exterior, apenas porque o evento ocorre fisicamente fora dos limites territoriais do Estado concedente. A literalidade do §4º do art. 35-A da Lei nº 13.756/2018, tal como vigente, restringe a utilização de meios de publicidade como estes, limitando, assim, indevidamente o pleno exercício da exploração dos serviços lotéricos pelos Estados-membros.
Estas razões, que, repita-se, encontram-se minudenciadas no voto de mérito que proferi na presente ação, conduzem-me à compreensão de que há probabilidade no direito dos autores da presente ação, a que se soma o manifesto periculum in mora ora demeonstrado pelo Governador do Estado de São Paulo.
Com efeito, a iminência da realização do leilão no procedimento licitatório destinado à concessão dos serviços lotéricos do Estado de São Paulo constitui razão suficiente para a concessão da medida cautelar no presente momento, visto que, em se mantendo as restrições que vislumbro inconstitucionais, o universo de empresas interessadas na concessão daqueles serviços tende a ser menor e, portanto, menor o potencial arrecadatório do Estado com a concessão dos serviços, com prejuízo à destinação de recursos importantes para políticas públicas de assistência social e de atendimento a pessoas vulneráveis.
Dessa forma, verificam-se presentes os requisitos para a concessão de medida cautelar.
Saliento apenas, para que não paire dúvidas, que a presente medida cautelar tem como objeto as modalidades lotéricas elencadas no §1º do art. 14 da Lei Federal nº 13.756/2018, não abrangendo a modalidade lotérica denominada aposta de quota fixa, tratada no art. 29 da Lei Federal nº 13.756/2018. A disciplina legal da modalidade lotérica denominada aposta de quota fixa não é objeto da presente ADI, sendo, antes, objeto da ADI 7.721, também de minha relatoria.
(…)”
Fux votou a favor de declarar a inconstitucionalidade das duas regras contestadas. Até o momento, ele foi acompanhado por Flávio Dino, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Cristiano Zanin, mas com ressalvas para destacar que Legislativo ainda pode limitar a competência dos estados para organização da prestação dos seus respectivos serviços públicos, de forma a proteger a ordem econômica e propiciar um ambiente de concorrência saudável.
A Procuradoria Geral da República se manifestou, em 17 de setembro de 2024, pela improcedência do pedido, consignando que as disposições questionadas estão no âmbito de competências legislativas da União e que há amparo constitucional para a restrição geográfica da exploração das loterias e da publicidade:
“(…)
A limitação da base geográfica que o legislador impôs à atuação de empresas dispostas a atuar no ramo das loterias atende ao propósito perfeitamente aceitável de prevenir a concentração de poder econômico privado num setor que tende a ser sensível para a economia. Percebe-se o intuito de fortalecer o poder de atração de concorrência nessa área que se apresenta, a princípio, de rentabilidade notável.
(…)
As disposições questionadas inserem-se no âmbito das competências legislativas da União (art. 22, XX, da Constituição). Encontram abono, mais ainda, na competência da União para editar normas gerais de licitações e contratos (art. 22, XXVII), na sua atribuição de planejar o setor público da economia (art. 174) e na sua alçada para disciplinar o regime das concessões e permissões dos serviços públicos (art. 175).”
O escritório Delivar de Mattos & Castor continuará acompanhando os desdobramentos desse julgamento para que atualizar os interessados das suas repercussões.
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6917578